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O espelho na nossa cara


leitura de FENDA

Texto do escritor S. Soares


Nesse elogiado romance em fluxo de consciência, não é preciso ser um bacharel falido que virou inspetor de alunos e embriaga na praia grande com os amigos para saltar do topo do iceberg no mergulho que o escritor José Wildzeiss proporciona em Fenda. Ao submergir, nos deparamos com a imensidão da base da montanha gelada flutuante. Ela é a consciência. A consciência de um homem. Um homem atormentado por si, pelo Grande Outro e pelo mundo que opera seu esmagamento. Nem tentemos comparações preguiçosas com algum leopold bloom ou qualquer flanador benjaminiano. Nosso herói, o inspetor de alunos, pede mais. Ou não pede nada. Não é preciso morar na Vila Formosa, bairro residencial da periferia de São Paulo, para (re) conhecer os trajetos. O percurso se faz pela memória, pela impressão, pelo devaneio, pelo engano, por uma ou outra epifania. Através dos olhos e da mente de um homem que, pela fresta da janela da lavanderia do apartamento alugado, enxerga a base do iceberg: as arestas cortantes da dimensão psicossocial, flutuante, movediça, encantadora e mortal. Quem de nós, afinal, mergulhou para observar tamanha monstruosidade?

fenda

Não é preciso ser pai do João para sorrirmos diante da doçura infantil que se esvai; nem funcionário da escola para nos identificarmos com os personagens quase arquetípicos que ali se arrastam; nem amigo do Rogério para nos esquecermos da morte e das suas prontidões; nem vizinho do condômino para compreendermos o que grande parcela dos brasileiros se revelou nos últimos anos.

José Wildzeiss (ou o inspetor de alunos?) nos pega pela mão e pela alma. Sem termos tempo de abrir a boca para um comentário ou mesmo tomarmos fôlego, lá estamos espiando o mundo pelas frestas da janela, da memória e da consciência.

O desfile cíclico e psicodramático daqueles e de outros personagens como a vizinha metediça, o Seu Édio, o Nilton, a minha mulher, o professor de língua portuguesa, a professora da sala de informática promove em nós o efeito de familiaridade. Como assim? Isso aconteceu comigo!, diremos em vários momentos.

Pois é disso que se trata: ao abrir a janela da lavanderia e da (sub) consciência do inspetor de alunos, o autor nos deixa ali, intrometidos, indiscretos, escrutinadores dos grotescos da vida num país que desabou ou flutua à deriva como um iceberg. Pedimos um cigarro para o inspetor. Acontece que não nos é dado tempo de respirar.

O inspetor mapeia as dores que são nossas, as frustações, as falências do corpo e do espírito. Dialoga, com ironia socrática, com as culturas pop, com a filosofia, com a psicanálise, com a política e, principalmente com o ingênuo e nefasto senso comum que nos abraça.

Que tal isso:

dá pra ficar cinco minutos talvez na cadeira de área na sacada com o laptop esquentando no colo e os pés apoiados no código de barras.?

A fruição poética na prosa de José Wildzeiss dificulta o uso das classificações estanques de uma literaturometria. Prosa poética? Fluxo de consciência? O insuficiente Romance Contemporâneo?

Esqueçamos! Não temos tempo para isso.

Queremos flanar com o inspetor de alunos, sem sair da lavanderia, sem nos mostrar, espiando pela janela. Expiando.

O texto de Wildzeiss descontrói a arte da palavra, depois que Derrida e Deluze se foram. Pequenos eternos retornos nietzschianos povoam as linhas. Epopeia que afirma nossas vilas formosas, mais tocantes, pois são nossas. Precisamos dar conta dos arquétipos de uma brasilidade contemporânea. Precisamos nos recuperar da imagem no espelho posto em nossa cara pelo inspetor de alunos.

Como não seria precipitado dizer que Fenda trata de você, de mim, dele e dela. O Grande Nós flutuando e derretendo num oceano que aquece.

E o gavião deu rasante!

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