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Foto do escritorThiago Medeiros

Uma família chamada Brasil


Thiago Medeiros

leitura de O MOTORISTA DE MÉDICI

Texto do escritor Thiago Medeiros


Quando fui chamado por Carlo Benevides para trabalhar na OIA Editora, tinha uma certeza: Precisamos de um romancista. Sabia exatamente onde buscá-lo, minha única dúvida era saber se o romance já estava pronto. Acompanhei, muito próximo, o nascimento de toda esta narrativa.

O drama iniciado pela família Rodrigues, na cidade de Garanhuns, do Agreste Meridional pernambucano, é uma pequena parábola, na realidade um retrato em 3x4, de fatos recentes, marcadamente recentes da História brasileira.

Era 2018. Naquele mesmo ano ainda choraríamos uma eleição feito chorássemos a necessidade de sobreviver ao fim do mundo. Cinco meses após aquele carnaval, citado nas primeiras páginas, naquela mesmo Garanhuns, um sem-nome, sem rosto, na afonia dos covardes, jogaria uma bomba na primeira apresentação do espetáculo, realizado pela atriz trans Renata Carvalho, “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, por sinal eu estava lá na segunda apresentação, quando a tropa de choque da polícia militar invadiu a casa de recepções, bloqueando a única saída do recinto, com os escudos virados para uma plateia e uma trabalhadora – sim, arte é um ofício – em pleno exercício de suas atividades. Tudo isso, inclusive aquela terça-feira gorda, reflexo de um país incipiente em estabelecer definitivos na condução das próprias narrativas.


Capas de "O Motorista de Médici"

Mas enfim, era fevereiro de 2018, eu também estava lá enquanto a tia, reveladora dos fatos, suspirava o orgulho pelo irmão condecorado – ao lado de Brilhante Ustra, mas isso não foi comentado –, sem saber direito o que teria feito o irmão para merecê-lo, cuja confiança, por parte do Exército, era tão grande que chegara a ser motorista particular do Ditador Médici – ela se referia sempre ao presidente –, provavelmente por seus trabalhos prestados ao “serviço secreto”. Disse ainda, trabalhava disfarçado, de engraxate, em meio a sambas e rodas de música. Isso me acionou o alerta. Perguntei o nome do parente e, numa pesquisa simples ao Google, lá encontrei, nas listas de torturadores da ditadura militar, Abel Rodrigues de Lima, o Cabo Foguinho. Sobre a tia orgulhosa, confesso não ter tido coragem para mostrar, mas dos outros acompanhei uma resignação atônita, emudecida e envergonhada, de eram outros tempos e não sabíamos, eram outros tempos. Mário não estava lá. Fui eu quem o chamou para acompanhar o restante do relato, ou daquela despretensiosa delação tardia. Vindo da potência demonstrada em Receita para se fazer um monstro, no qual, mesmo sendo um livro de contos, já demonstrava fôlego para narrativas longas, e da crítica social contundente em A cobrança, sabia que naquele lado dos Rodrigues não caberia resignações.

Não pretendo aqui falar sobre técnicas literárias empregadas por Mário Rodrigues, a polifonia adotada na construção deste livro, outros e outras irão fazê-lo, com certeza sob rigores melhores aos meus. Ainda assim, guardo uma teoria, por sinal personalíssima, sobre quem seria o verdadeiro personagem principal deste romance documental de traços autobiográficos. Aprendi com Raimundo Carrero, um escritor nada explica, apenas exibe verdades por meio da metáfora. Mário Rodrigues, agora personagem, a primeira pessoa da narrativa, é uma imensa metáfora sobre essas terras tupiniquins. Naquele momento pergunta-se Mário, como também pergunta-se até hoje o Brasil, que fazer diante da crueza da história familiar?

Tal como deveria fazer o Brasil, em sua longa mania, ou em bom pernambuquês pantim mesmo, em não estabelecer definitivos sobre as próprias narrativas, Mário Rodrigues não se dispõe a estabelecer um acerto de contas familiar. Não se trata disso. O autor, naquele momento tem a acertada percepção de uma necessidade. Não é sobre cumprir uma dívida. A História deste país carece em defrontar-se as cruas e embotadas realidades de sua formação. Sem medo ou enfeites, este país necessita de definitivos.

Capa do livro

O motorista de Médici segue na contramão de tantas outras obras, muitas delas também reais, sobre a ditadura militar. Não irá se falar sobre uma família arruinada pela perseguição política daquela época. Como vimos – levando em consideração que você está lendo este posfácio após a leitura –, é o oposto. Afinal, se as vítimas, as vidas perdidas, os torturados, os órfãos, as viúvas, os pais e mães sem filhos e filhas, nos foram próximos, também nos eram próximos e familiares os feitores da tirania. Foram vizinhos, seus filhos brincaram com outras crianças, até hoje compram pães, pagam contas, cumprimentam você num elevador, numa fila, numa parada de ônibus, assentam-se às mesas diante de um cadáver na ceia de natal, fanfarroneiam na terça-feira de carnaval, são também pais, filhos, irmãos, tios, nem tão escondidos, mas isentos e ilesos sobre o andar da História e antes fossem apenas monstros.

Nesta obra, Mário Rodrigues, trazendo o pulso narrativo elaborado em sua última obra, A Cobrança, agora enriquecido através da polifonia de tantas personagens – uma vida nunca é interpretada por uma única parelha de olhos –, expõe incômodas chagas familiares, abertas e sem suturas, justamente por não termos nossa História, como brasileiras e brasileiros, cicatrizada. Não há pontos finais sobre nossa ditadura doméstica, torturadores e algozes seguem soltos, latindo sobre terem estado em guerra, nos salvando de sabe-se lá o quê – o fantasma do comunismo é a cabra cabriola dos assépticos cidadãos de bem.

Mário Rodrigues, é um Autor o qual recusa esquecimentos, em nome da verdade histórica e de sua firmeza em acreditar nas possibilidades democráticas. Luta-se de várias maneiras neste mundo, principalmente na literatura. Mário nos traz uma arma poderosa aqui e ela passa pela ausência do medo em revirar a comodidade dos silêncios familiares, pois estes também são silêncios e lacunas da História.

Mário Rodrigues, é um Autor o qual recusa esquecimentos, em nome da verdade histórica, trazendo o mesmo pulso narrativo elaborado em sua última obra, A Cobrança. Personagem e história que necessitava a literatura brasileira.

Então é isso. Uma história de família passada a panos limpos. Quem dera um país chamado Brasil pudesse chamar-se Rodrigues e entre sua parentela nos surgissem mais Mários, dispostos sempre a recusar-se à resignação, por saber que a História é sempre maior que nossas famílias.

A título de curiosidade, enquanto colhia depoimentos para a construção deste livro, toda a família Rodrigues apercebeu-se de um detalhe. Não há fotos de Abel, o Cabo Foguinho. Nenhuma. Isso diz muito sobre uma família chamada Brasil.

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