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O riso de desafios no melodrama estapeado no ar


leitura de O BAILE DAS ASSIMETRIAS

Texto de Carlo Benevides



Não há como não falar sobre esoterismo, espaço-tempo, magia e suas relações com a literatura nesse baile. Inevitável. Mas aqui, peço licença para discorrer sobre o que mais encanta nessa obra: o prazer ao ler.

No baile assimétrico de Émerson Cardoso, quem dança é a nitidez dos fatos sarcasticamente novelescos, onde imaginários saltibancos desleixados, acrobatas embriagados e palhaços desengonçados caem na lona ao fim de cada conto, provocando risos estapeados no ar pelo autor.

O tapa é para quem lê. Luvas de boxe para o desfile de protagonistas desgraçados pela comédia das tramas que se desenlaçam em cenários fabricados em sua mente, leitor, sem qualquer pompa. Pelo contrário. O inverso é a realidade. As caricaturas sublimam do grotesco ao surreal, vez por outra abrindo a porta para o perigo, traição e memórias que nos matam, esquecendo o ansiolítico na porta da livraria onde deixamos, sem dúvida, quando saímos abraçados ao livro. Por isso, restou oferecer a você, leitor, o inevitável desfile melodramático de ladrilhos humanos desalinhados em prosa alta.

Não são simétricas, tampouco calculistas, realistas ou pragmáticas, as personagens. Émerson é um cínico prazeroso e contumaz belicoso das letras. Não nos poupa. Quem disse que desejamos ser poupados? Ele que não ousasse nos privar de Tony Torloni, a Fran de Dona Regina, a Auxiliadora!, a pessoa da poltrona sete, a velha atriz, o velho bibliotecário, o Rodrigo Paivani, a Angelina, a Dona Diva, a pessoa moribunda, a Felícia e a eterna namorada do violinista.

Hoje, impregnado da escrita de Émerson, sinto-me mais humano e simples. Permito que suas personagens dancem em minha moral canalha e presunçosa formalidade. Sou leitor nu, desnudando-me da arrogância acadêmica ou intelectual quando abro a porta para esse baile das assimetrias. Não sei dançar. Não importa. Neste baile, apenas seus olhos dançam.

O baile das assimetrias é uma Hidra de Lerna de doze cabeças astrais. Cada cabeça, representando um signo do zodíaco, utiliza-os tão somente como pano de fundo para atiçar o ofício do contador de histórias. Émerson é entre os contistas atores e poetas, o melhor fingidor que conheci.

Cada cabeça dessa Hidra (que não lhes morda agora que está em suas mãos!), promove desafios diferentes, os quais chamamos de sensações ou armadilhas, ou bem que poderíamos denominá-los, tão somente, de dilacerações. O autor nos desafia a pensar e isso não tem preço!

Em Tony Torloni (Ou psiquê defenestrada), Lenda-Parábola De Trisal Não Informado e em Felícia, o autor nos convida à tragicomicidade dos amores mal correspondidos ou àqueles que nascem proibidos e, mais ainda, leva-nos a pensar onde seremos capazes de ir para alcançá-los, por mais que sejam absurdos, infantis ou ilusórios. Em tramas que estapeiam a gargalhada, portanto, silêncio!, o grotesco aqui é poético e o lírico, o escárnio da maneira em que o autor desenha feito um escultor as personagens e os cenários realistas, obriga-nos a tomar a água que passarinho não bebe, estando à sombra da mesa onde encontramos Mestre Suassuna feliz da conta, ou felicidade maior que a de um roteirista de novela mexicana. Émerson nos provoca. Quer saber onde se encontra nosso limite entre o patético e o comportado, pois nestes contos todos têm tão cara de gente e os acontecimentos, consequências do meio e da situação que os cercam, acabam nos aprisionando nestas histórias com a certeza de que o amor deve ser vivido e a graça, jamais superada pelo ódio. Um salve aos arquétipos e caricaturas que colocam um megafone na realidade, antes emudecida. Viva quão bregas sejam os amores, quando reais. Émerson nos lava a alma!

Em Grita, Auxiliadora, Grita! e As Labaredas De Angelina, o autor nos traz o que há de mais importante da vida em sociedade: a luta de classes. Melhor ainda!, ele nos mostra os que reagem e os que não reagem, frente aos abusos que sofrem. A comicidade aqui está presente como nos três anteriores que citei, mas ao lerem perceberão que o riso aqui é amarelado, o clima é mais tenso, pois nos lembramos de nossas próprias culpas veladas. O que falar de Angelina e Auxiliadora? Adoraria saber de suas conclusões.

Eu estou aqui, pensando nessa obra, e começo a perceber que o escritor me joga constantantemente de um lado para o outro, como eu disse no início, desafiando-me. Ora com o tragicômico, o sorriso de culpa no cartório e agora, com O Reencontro, O Abismo A Um Passo e Sonata Para As Cinco Chagas, eu peço trégua! Poucos textos são tão humanos, isto é, aproximam tanto o real do imaginário quanto esses, provando-me, o autor, que nesta atmosfera há espaço para contar um conto com mais tensão e densa carga dramática. Gosto de ser pego de surpresa. Você, não?

E me deparo com provocações! A grande qualidade de provocar está na coerência do que é ficcionado. Em Poltrona Sete e Gólgota Para Argos Panoptes, encontramos não apenas a qualidade provocativa, mas a curiosidade que se amplia quando lemos atentamente. Aqui, os sexos dos anjos estão todos nus!

Ausência e Às Vésperas Do Silêncio conseguiram me levar a outro estágio de consciência. A poética, aqui, pulsa entalada na garganta e encontramos, como não poderia deixar de ser, a prosa poética plenamente realizada no último citado.

Há doze signos do zodíaco e doze contos que nos permitem pensar em cada um deles, isso é o óbvio. Mas existe em O baile das assimetrias, sempre, a transgressão do óbvio, tornando a obra relevante para a literatura brasileira contemporânea. A presença do zodíaco apenas nos faz entrar de cabeça, sem medo algum, nos desafios e angústias narrativas de Émerson Cardoso.

O grande brilho dessa obra é a qualidade literária de construir, sem o menor pudor, personagens, todas elas, em todos os contos, tão distintas entre si, como também construídas com esmero de maestria. Elas nos provocam e nos apresentam quando as sentimos, as apreendemos ou as absorvemos com O baile das assimetrias, que o caricatural, o grotesco, o nonsense e o realismo mágico, em muitos casos, é mais sincero e real que nós mesmos.

Um livro para se devorar a cada respingo de saliva em forma de palavras soltas nas páginas.


Que os astros nos guiem...


o baile das assimetrias

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