sobre VIVÊNCER
Texto encomendado pela OIA editora
Uma obra literária teria apenas dois caminhos para atingir os leitores: pelas estradas da emoção e da estética. Estradas nem sempre contíguas, em algum momento reúnem-se e dela não se sai mais, se tudo der certo.
A escritora Luciana Magry não concorda plenamente. Ergue pontes, passarelas, viadutos, pinguelas, saídas e entradas dessas vias principais. Esses interstícios são feitos de material distinto, nem tão rígidos (quanto pede o Leviatã do estilo) nem tão etéreos (quanto permitem as Musas). É possível ver a escritora levantando suas pontes no meio das autoestradas da escrita. Ela é psicanalista.
Os dezenove contos de Vivêncer espalham-se numa espécie de relevo muito acidentado. Ora nos vemos em vales trevosos, alguns em que nem a sombra entra. Ora estamos nos cumes de montanhas, observando a comédia humana com risos e sorrisos. Às vezes, soltamos gargalhadas. Luciana Magry, entretanto, não se prende a dicotomias estanques. Oferece uma terceira dimensão que é o escrutínio da psique humana. Daí, valor, moralidade, certeza e segurança escorrem das páginas.
Em Trevas, temos o horror. Estamos no vale trevoso. Mas não se engane: este vale está fincado entre nós. Luciana Magry dialoga com o terror contemporâneo, aquele que extrai das relações sociais o seu sumo, e não mais dos gatos e corvos de antes.
Até quando os oprimidos serão retratados em sua submissão, silenciados até mesmo como personagens literários? Em Mata quem te mata, Benedita!, a escritora nem perde tempo teorizando. Põe sua Benedita em ação, para nosso deleite silencioso, secreto e inconfessável.
As mulheres de Vivêncer são vítimas em alguns momentos. No entanto, mesmo sucumbindo, deixam seus recados. Estapeiam seus algozes (e nossa moral de rebanho) com aquele riso emoldurado pelo rímel borrado. Um crime quase (im)perfeito nos leva à beira do abismo do engano, da precipitação. É possível sentir o vento no rosto durante esse voo sem asa delta, sem paraquedas, sem nada. A psicanalista nos deixa livres para especular sobre a queda do personagem e de nós mesmos, em solo pedregoso no fundo do vale.
A autora poderia, com empáfia e argumento de autoridade, despejar jargões da psicanálise tão em moda. Não! A psicanalista dá um passo para o lado e deixa a artista passar em Homem de família, A sogra, O galo e Sessão de terapia. Ressentimento, recalque, culpa, pulsão de morte, castração e todo o aparato freudiano e pós-freudiano são ressignificados em in(ter)venções literárias. Que tal a síndrome do ninho vazio? Ou ainda: uma piscadela para Nietzsche ao nos lembrar da necessária parábola do camelo, do leão e da criança. Aqui estamos no topo da montanha, observando e rindo.
A curva nos faz gargalhar, desde que nos permitamos sorver o ar refrigerado da montanha. É humor permitido a iniciados, libertos do maniqueísmo moral. A sutileza irônica é ornamento, não apenas uma decoração.
Luciana Magry parece não querer nos deixar em paz. Na paz mórbida das certezas, dos lugares comuns, das desculpas esfarrapadas. Ela é psicanalista, lembra?
O melhor dia de sua vida nos empurra montanha abaixo. Ainda com o sorriso na alma, vamos franzindo a testa, fechando a cara e percebemos que estamos indo ao encontro da escória humana. A escória protagonista das injustiças sociais. A escritora nos faz dar a mão à Janine e produz a empatia, ou seja, sofremos com ela.
E Janine, catando suas latinhas e suas alegrias, nos lembra de Carolina Maria de Jesus, que viu a cor da fome. Luciana Magry nos faz ver a cor da fúria através de sua Rafaela, em (Re)começo. E feridos pelas dores de Janine, ficamos em pé com Rafaela.
Como estamos em pé, mas doloridos, a escritora nos dá um momento de pausa.
Pausareflexiva. Convida-nos ao repouso nas pedras do vale. Observamos o ciclo (caótico) da vida em Salvação. Este conto nos sacode para que prossigamos em nossa caminhada. Aqui as filosofias vitalistas compõem os cenários que virão.
E lá vamos nós montanha acima, deixando as feridas ressecarem, cicatrizantes. As marcas permanecerão. Férias, Cafeteira moka, Delicadeza urbana e Cotonete nos faz tirar os sapatos no cume da montanha e rir com as cócegas da neve. Humor incisivo, de riso nervoso, mas aberto. Rir das mazelas, das próprias mazelas, afinal, não seria um recurso terapêutico?
Enxugando as lágrimas das gargalhadas, estamos prontos para o lirismo elevado. A artista resplandece no controle da sessão. E depois d’O caso Fabiana saímos fortalecidos, prontos para o que der e vier.
E vem! Com Estrada da vida, Chove e Baixo relevo nos sentamos de frente para a escritora, a mulher, o ser humano Luciana Magry. É preciso estar no alto da montanha, depois de transpassar os abismos, cicatrizar as feridas, rir de si próprio para conversar com ela. Nestes contos finais, estamos de mãos dadas, nós e ela. O ar puro da montanha, gélido e revigorante, nos abraça e nos faz abraçá-la.
Auto ficção? Entrega de si? Autobiografia? O que importa?
Importa que a Literatura de qualidade seja o exercício do encontro. A escritora marcou nossos encontros com mulheres, homens, crianças, opressores, oprimidos, deserdados, desordeiros que estão em nós. Nos encontramos todos, todas. Transfigurados em seus personagens, observaremos melhor quem nos pisa e em quem pisamos. Ora no fundo do vale, ora no alto da montanha.
Os contos de Vivêncer nos abraçam como para não nos deixar cair, nos aquecer, nos acalmar e nos chacoalhar.
Voltaremos para nossas vidas ilusoriamente planas com lembranças vigorosas dos vales e das montanhas. E com orgulho mostramos nossas cicatrizes.
E sentimos as mãos apertadas, nossas às dela, esperando a próxima aventura pela trilha da existência humana, a qual Luciana Magry sabe percorrer e guiar tão bem com suas palavras. Deu tudo certo: emoção, estética e psicanálise. Vencemos todas e todos! A Literatura venceu!
E quanto ao título do livro — Vivêncer —, pensemos nele como o vigésimo conto da coletânea. Mostremos o que aprendemos, decifrando-o.
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