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A/À mesma face de um escritor múltiplo


Mailson Furtado

leitura de A DUPLA FACE DO BARALHO

Texto do escritor Mailson Furtado



Passados 40 anos do último ponto final, e 18 anos de sua última edição, A dupla face do baralho – Confissões do comissário Félix Gurgel, terceiro romance de Raimundo Carrero, retorna ao público através da editora ÓIA, em um grande trabalho de republicações das obras do autor. Este romance, que junto de dois anteriores, A história de Bernarda Soledade (1975) e As sementes do sol (1981) se ambientam na pequena Santo Antônio do Salgueiro, alicerçando o primeiro trilhar do autor em seu experimentalismo literário, marcado pelas provocações do movimento armorial, e que trazem valorosas contribuições para um enxergar e debater sertanejo, muito além de seu aspecto geográfico, folclórico e/ou sociológico, excessivamente repetido ao longo de grande parte do século XX (e infelizmente ainda hoje). Não por isso Carrero deixa de apresentar o sertão, pelo contrário, ele está ali mais vivo que nunca, mas exposto e embutido (e tantas vezes transbordado) no sentir humano, numa quase fratura exposta, que não precisa ser dita ou explicada, apenas lida. Vista. Apenas sentida. Carrero, em muitas de suas falas, em entrevistas, aulas, diz de sua meninice em Salgueiro, sua terra natal, centro do sertão pernambucano, de suas vivências com as tão ditas secas – mote maior da fotografia sertaneja –, afirmando que nunca a viu. Viu sim o sofrimento marcado em carne, na vida de tantas pessoas, que sua mãe caridosamente acolhia no alpendre de casa em refeições, dando um pouco de conforto naquele momento de agonia. Ali de fato, era a seca, guardada em um sentir humano. E assim, ao longo de toda sua obra, Carrero traz esse experienciar interno como principal cerne de sua escrita, independente do local onde se passam as vivências, aquele apenas o amparo para o desenovelar de suas narrativas.

Em A dupla face do baralho, à beira de uma calçada em Santo Antônio do Salgueiro, o comissário aposentado Félix Gurgel, na mesma velocidade do balanço de sua cadeira, devaneia lembranças de seus dias, confessando a si mesmo o desamparado de sua própria história e assim se conta. Nos conta. Raimundo Carrero, em um cartografar subjetivo e ao avesso, se finca na experiência do ser, em um mergulho no interior humano, desnudando-o e o colocando à disposição e sem qualquer julgamento, para que ao leitor seja dado um lacerar-se por conta própria. Nesta novela, além de transduzir o real e o fantasioso à mesma dúvida, pontua como em grandes obras universais, experiências de dualidades do ser – o próprio título já provoca isso –, faces que não se negam, mas se somam. Muitos dos personagens, mergulham na possibilidade de serem o seu antônimo (ou além dele) e em inconsciência seguem seu caminho, sem bênção ou licença, marcados por uma desesperança perene, mas sempre viventes a não desistirem do próprio abismo.

Gurgel com um olhar empoeirado, traz em sua solidão, as culpas e castigos de toda a vida, naquele momento onde o que lhe resta é esperar. Em um trilhar não cronológico, e provocado por espantos, o ex-comissário enocega cenas de sua infância e juventude, onde rouba e mancomuna mortes, e por veredas da vida (as mesmas de sempre), de carcereiro passa a comissário, mandante-mor do lugarejo, mas que sofre a entender o mando em si próprio – e sem qualquer saída, mergulha no mesmo personagem, prisioneiro de si, e agora aposentado e livre àquela cadeira, se indaga – “A liberdade não é uma espécie de prisão?”.

Assim Carrero mergulha na alma humana, e de seu interior a expõe, desfolhando-a camada à camada e de forma crua e objetiva, alicerça subjetivações, para que naquela vivência nos coloque, quando não, minimamente nos provoque um esbarrar de ali ser/de ali não ser, mas por vontade ou por tropeço, estamos!, em uma, duas, ou sabe-se lá quantas faces. Basta o aceite dessa viagem sem volta. E por aqui paro, já que como diz Félix Gurgel à sua calçada – “é preciso desconfiar de conversas longas demais”.



MAILSON FURTADO. É escritor, editor e produtor cultural. Autor de À CIDADE, poema-livro vencedor do Prêmio Jabuti 2018.
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